Escrituração e Contabilidade

Podemos dizer, com base nas obras dos tratadistas da História da Contabilidade , que ela sempre sofreu avanços no tempo e no espaço, partindo da partida dobrada (escrituração) - fase do empirismo contábil - para as grandes teorias que formaram as doutrinas contábeis, o Arcabouço Científico Maior da Contabilidade.

            Contribuíram para esses avanços, notadamente, as Escolas Italianas de Contabilidade - embora em outros países também tenham surgido e até as influenciado -, desde o século passado até o presente, com o Contismo, o Materialismo Substancial (ou de valor), o Personalismo, o Controlismo, o Reditualismo, o Aziendalismo e, por fim, o Patrimonialismo.

            Nos ensinam ainda os historiadores da Contabilidade que tais Escolas surgiram uma em oposição às outras, sempre avançando, num trabalho gigantesco de dar dignidade e autonomia científica à matéria e de encontrar os seus verdadeiros objeto e fim, e foi dessa luta de oposição de idéias que ela alcançou no Patrimonialismo, por fim, o status máximo de ciência, com objeto e método próprios de estudos e indagações, ou seja, o patrimônio das aziendas, considerado em sua Estática, em sua Dinâmica, em seus aspectos Qualitativos e Valorativos e em suas relações de causa e efeito, observadas preferencialmente pelo método dedutivo, mas igualmente pelo indutivo, pelo estatístico e pelo contabilístico, daí defluindo importantes leis e conclusões para o melhor governo da riqueza aziendal.

            Pelo exposto, dentre todas essas Escolas, o Patrimonialismo, do insigne Prof. Vincenzo Masi, foi a que mais teve aceitação nos demais países do mundo, inclusive em termos oficiais no Brasil, inclusive por meio de Resoluções do Conselho Federal de Contabilidade, adotando a classificação Masiana da Contabilidade como Ciência do Patrimônio.

            Assim, acompanhando a evolução do Pensamento Contábil que ocorria nas várias Escolas que se foram sucedendo umas às outras, principalmente na Itália, no Brasil passou-se também pelo mesmo processo de avanços, desde os simples métodos de escrituração, chegando-se ao Contismo (fase pré-científica) e daí para as demais Escolas citadas, até atingir-se e situar-se no Patrimonialismo (fase científica), e, atualmente, deparando-se com o Neopatrimonialismo, que já conta com vários adeptos e seguidores.

            Destacam-se como patrimonialistas no Brasil, pelo alto relevo e teor de suas obras e trabalhos, Frederico Hermann Jr., Francisco D'Auria, Américo Matheus Florentino, Cibilis da Rocha Viana, Hilário Franco, José Amado do Nascimento, Alberto Almada Rodrigues e tantos outros, não como simples tradutores, mas como estudiosos que tiveram a visão e a sensibilidade de ver na Obra Masiana o verdadeiro caminho reservado à Contabilidade como ciência, interpretando-a, aprofundando-a e completando-a com gênio e brilhantismo pessoais próprios, tendo ficado célebres, na Contabilidade Brasileira, por exemplo, as obras dos dois primeiros autores citados, ou seja, CONTABILIDADE SUPERIOR e CONTABILIDADE PURA, respectivamente.

            Todavia, e longe de tirar os méritos dos demais autores Patrimonialistas, cujas obras e trabalhos marcam indelevelmente a História da Contabilidade Brasileira, entendemos que, por uma questão de justiça, dentre todos eles merece lugar de destaque e honra o ilustre Prof. Dr. A. Lopes de Sá, escritor, pesquisador, historiador e batalhador Patrimonialista incansável em nosso país e além fronteiras, desde as suas primeiras obras, e mais pela coerência, firmeza, convicção e fidelidade de pensamentos nelas demonstradas em prol da causa da Contabilidade Patrimonial de Vincenzo Masi. Além do mais, e de fonte genuinamente brasileira, o citado Professor é fundador, hoje, do Neopatrimonialismo, cujas sólidas bases estão lançadas nas obras de sua autoria TEORIA DAS FUNÇÕES SISTEMÁTICAS DO PATRIMÔNIO AZIENDAL e TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO CONTÁBIL.

            Mas nem tudo ocorreu assim. Por exemplo, nos Estados Unidos da América do Norte, à exceção de alguns autores, a Contabilidade foi tomada de um pragmatismo generalizado que, não obstante todas as conquistas e avanços doutrinários da matéria, preferiu ignorá-los, recuando para uma fase empírica de há muito ultrapassada, pois dirigido mais para preparação e apresentação de demonstrações contábeis segundo critérios ou procedimentos baseados nos controvertidos Princípios de Contabilidade Geralmente Aceitos, estabelecidos sem uma base doutrinária sólida maior, configurando-se, por isso, mais em meras convenções do que propriamente em princípios.

            Tais "princípios", originados dos organismos de classe dos Accountants americanos, têm como fim uma suposta garantia de validade das demonstrações contábeis perante o que "alguns" elegeram como sendo de interesse de "todos" os "usuários" internos e externos destas, nisto residindo todo o seu mérito.

            Evidentemente que reconhecemos a importância de uma certa padronização em termos de preparação e apresentação de demonstrações contábeis e de uma certa consistência em termos de procedimentos contábeis, mas isto a partir de práticas que encontrem respaldo em sólidas Doutrinas e Teorias Contábeis, e não surgidas meramente ao acaso ou por força de interesses de classes.

            Os Princípios de Contabilidade Geralmente Aceitos começam a chegar até nós juntamente com as firmas multinacionais de Auditoria Independente que se instalam no Brasil há mais ou menos meio século atrás, princípios esses que, no ano de 1972 - certamente por influência dessas firmas -, foram oficializados pela Resolução n.º 321 do Conselho Federal de Contabilidade - CFC, aprovando trabalho nesse sentido que lhe foi encaminhado pelo então Instituto de Auditores Independentes do Brasil - IAIB, hoje Instituto Brasileiro de Contadores - IBRACON.

            Mais adiante, por força de severas críticas de que foram alvo os referidos "princípios", o CFC constituiu um grupo de Contadores para desenvolver trabalho sobre o assunto, grupo esse que acabou por apresentar os Princípios Fundamentais de Contabilidade, aprovados por nova Resolução, em 1981, sob o n.º 530, absorvendo os Geralmente Aceitos (em número de seis) e suas Convenções (em número de quatro), inclusive sob outras denominações, e acrescentando outros, em número bem maior do que os primeiros (dezesseis, contra seis dos Geralmente Aceitos).

            No referido trabalho, contudo, tiveram os Contadores integrantes do grupo a louvável preocupação de procurar fundamentar cada um dos novos princípios elencados em bases mais doutrinárias, produzindo extensa dissertação sobre a matéria.

            Depois de todo esse ingente esforço, o CFC, em 1993, simplesmente revoga a Resolução n.º 530, substituindo-a pela de n.º 750, onde - sob a justificativa de atualização por força de "avanços da última década" - regride aos controvertidos Princípios de Contabilidade Geralmente Aceitos, agora sob a égide de Princípios Fundamentais de Contabilidade, acrescentado-lhes, todavia, o Princípio da Atualização Monetária, posto que a economia norte-americana não apresenta problemas de ordem inflacionária.

            E a própria Lei 6404, de 1976 - atual Lei das Sociedades Anônimas -, nas partes em que trata da Contabilidade, normatiza também nesse mesmo sentido, ou seja, passa a reconhecer e a oficializar os ditos Princípios de Contabilidade Geralmente Aceitos, como se a Contabilidade devesse estar a serviço da mera informação para "usuários", e hoje se pretende ainda "atualizá-la", para que passe, inclusive, a ser aplicada a outros tipos de sociedades e empresas.

            Esta Lei, em nossa opinião, trazida sob um manto de "modernidade", na realidade conseguiu fazer com que a Contabilidade recuasse ao tempo ora do Contismo, ora do Personalismo, ora de outras Escolas, numa verdadeira miscelânea de aspectos e conceitos de há muito já superados ou próprios de outras ciências, como o de voltar a cometer o equívoco dos Personalistas, ou seja, o de preparar e apresentar demonstrações contábeis com base no conceito de patrimônio como um conjunto de direitos e obrigações, do "deve" e do "haver", assim como apoiadas também em muitos aspectos essencialmente financeiros. Portanto, sob tais ângulos de observação, as citadas demonstrações não seriam "contábeis" propriamente ditas, mas sim "jurídicas" ou "financeiras" (aliás, como as denominam os norte-americanos - Financial Statements), uma vez que colocá-las ou estudá-las sob esses prismas caberia às ciências do Direito ou da Administração, e não à da Contabilidade.

            E tanto é assim que, em muitas empresas, as demonstrações contábeis oficiais são substituídas por outras, baseadas em uma Contabilidade Interna ou Gerencial, ou sofrem muitas e muitas reclassificações para melhor servirem às análises internas, voltadas para os aspectos que as oficiais, pelos motivos expostos, não conseguem atender. Essas reclassificações também são feitas pelos analistas externos das demonstrações oficiais, por exemplo, pelos mesmos motivos. Portanto, hoje, na realidade, temos demonstrações contábeis oficiais para atender a supostos interesses de "usuários", tanto internos quanto externos, e demonstrações contábeis não oficiais preparadas ou reclassificadas para atender aos reais interesses desses mesmos "usuários".

            Concluindo, queremos manifestar nossa preocupação com os destinos da Contabilidade no Brasil, pois se nós, contabilistas em geral, atuais e futuros, juntos com as maiores autoridades no assunto, não nos posicionarmos a respeito, não propugnarmos por redirecionamentos nos estudos de nossa disciplina, inclusive em termos curriculares , tão como em termos de normatização contábil oficial e legal, haveremos todos de continuar assistindo ao retrocesso a que ela foi submetida pelos modelos impostos através dos Princípios de Contabilidade Geralmente Aceitos e, em maior amplitude ainda, pela própria Lei 6404/76.